A saúde do esôfago no mundo contemporâneo — Hospital Português da Bahia
5 de novembro de 2006
A saúde do esôfago no mundo contemporâneo
05 November 2006
Formado pelo tubo digestivo e pelas glândulas que são anexas a esse tubo, como o fígado e o pâncreas, o aparelho digestivo, ou trato digestivo, é um dos mais importantes sistemas do nosso corpo, já que é o responsável pela alimentação e reposição de desgastes da nossa existência.
A função do sistema digestivo é preparar os alimentos que deglutimos todos os dias, ou seja, decompô-los em seus elementos mais básicos, como os aminoácidos, as gorduras e os carboidratos, para que possam ser absorvidos e aproveitados pelo nosso corpo, nos nutrindo, repondo a energia necessária para o funcionamento dos nossos órgãos e devolvendo tudo o que perdemos no dia a dia.
Uma fatia de maçã, um filé com excelente molho, ou o mais delicioso prato de massa, caso fossem colocados dentro do nosso corpo, por mágica ou por cirurgia, além de não poderem ser aproveitados, ainda nos causariam infecções graves e outros problemas importantes. O processo de digestão, graças a atuação deste sistema, deixa o alimento em condições de ser absorvido e utilizado pelo organismo.
Durante a nossa gestação no útero materno, um longo tubo é desenvolvido por dentro do nosso tronco para exercer esta função, deslocando-se da boca até o ânus, visando transportar a comida que mastigamos e deglutimos todos os dias, ao tempo em que vai esguichando sucos digestivos sobre ela. As paredes deste tubo foram desenvolvidas com a característica de poderem produzir ácidos, enzimas e outras substâncias, que, juntas e ordenadamente, são responsáveis pela quebra dos alimentos nos seus menores componentes, permitindo que possam ser absorvidos por uma das partes deste tubo que é o intestino delgado.
A primeira parte deste tubo, responsável pelo transporte dos alimentos, da boca até o estomago, chama-se esôfago. Ao serem colocados alimentos dentro deste órgão, é desencadeada uma série de contrações ordenadas em suas paredes, o que faz com que os alimentos “andem” ao longo dele, indo até o estômago, onde se iniciará a digestão efetiva. É importante saber que o esôfago, além de controlar a condução do alimento, também é responsável por abrir e fechar a válvula que o separa do estômago: permite a passagem do alimento e interrompe o caminho logo após, evitando que ácidos e enzimas do estômago subam para o esôfago, em direção à boca.
Quando o esôfago fica doente
Durante muito tempo o esôfago era tido apenas como mero tubo condutor de alimentos, à maneira de um cano, e raramente apresentava doenças. O câncer de esôfago ocorria quase que totalmente entre fumantes e alcoólatras, e a dificuldade de deglutir (disfagia) ocorria em pacientes portadores de Doença de Chagas e em raros outros.
Com a incorporação de novos hábitos de vida e com o aumento da vida média das populações dos países desenvolvidos, a ocorrência quase epidêmica de duas doenças ou disfunções deste órgão fizeram-no evoluir da condição de órgão de menor importância para a categoria de órgão causador da doença do aparelho digestivo mais freqüente no mundo ocidental, a Doença do Refluxo Gastro Esofágico (DRGE), e outra de caráter mais grave, o Adenocarcinoma Esofágico.
O Refluxo Gastro Esofágico, tão comum nos dias de hoje, decorre da volta anormal dos sucos do estômago, com todo o seu poder corrosivo, e também de alimentos já deglutidos para o esôfago e em direção à boca. Existem atualmente trabalhos sugerindo que quase 40% da população dos EUA apresenta, pelo menos, um episódio de queimor retro-esternal mensal, subindo em direção à boca, e de tal intensidade que em muitos casos sugere a ocorrência de problemas coronarianos.
Estas ocorrências têm acabado por determinar uma maior busca por serviços cardiológicos de emergência, com todos os custos necessários à realização de invasiva e onerosa propedêutica cardiológica de urgência, muitas vezes, felizmente, com resultados normais, porém com determinantes financeiros significativos.
Em relação à outra doença, o câncer tipo adenocarcinoma do esôfago, trata-se de uma patologia bem mais grave e que passou a ser detectada pelos serviços médicos estatísticos, apresentando um crescimento da ordem de aproximadamente 400% nas últimas 3 décadas, afetando agora não mais pessoas de baixas condições sócio-econômicas, fumantes ou com grande ingestão de álcool, e sim pessoas de pele branca, com peso corporal acima do considerado adequado e portadores de Doença do Refluxo Gastro Esofágico.
Embora ainda existam importantes dúvidas quanto aos fatores que permitiram a eclosão das “epidemias” de DRGE e de adenocarcinoma esofágico, sabe-se que fatores como o aumento do estresse diário, o aumento de peso médio da população e a mudança de hábitos alimentares participam em graus variáveis das possíveis causas.
O poder dos estudos em esôfago
Com as atenções médicas voltadas para o entendimento das causas e dos melhores tratamentos destas doenças esofágicas, agora de grande incidência, foi natural que ocorresse a geração de novos conhecimentos. Assim, passou-se a entender melhor o funcionamento do esôfago e as suas íntimas interrelações com vários órgãos importantes, principalmente depois que a pHmetria e a Manometria esofágicas foram aperfeiçoadas e amplamente utilizadas, passando a informar aos médicos sobre as importantes interações com outros órgãos, tais como a laringe, pulmões, orofaringe e coração.
Por exemplo, pacientes adultos que passam a apresentar asma brônquica podem apresentar melhoras com os efetivos tratamentos que dispomos para a Doença do Refluxo, assim como os portadores de tosse crônica, pigarro, portadores do “bolo” na garganta, que anteriormente era chamado de bolo histérico, portadores de alguns casos de sinusite, otite e “amigdalite de repetição”, sem confirmação de infecções e que eram tratados como alérgicos, podem igualmente se beneficiar com a interrupção do retorno dos alimentos e secreções do estômago para cima, em direção à boca, ou seja do Refluxo.
De uma maneira mais rara, porém não desprezível, também relatos de casos de “espasmos” coronarianos, com todas as suas decorrências, em pacientes com coronárias normais ao cateterismo e portadores de Refluxo Gastro Esofágico intensos, têm sido encontrados mais freqüentemente na literatura médica, embora ainda não se tenham conclusões seguras quanto à validade destas citações. Em nosso histórico profissional, alguns poucos pacientes jovens têm sido tratados com estas características.
Por último, o aumento do número de pessoas idosas na população também se beneficiou destes avanços, já que foi identificado que, assim como a capacidade visual que decresce naturalmente com o tempo (a “vista cansada” ou presbiopia), a capacidade do esôfago em transportar os alimentos da boca até o estômago também decresce, como decorrência do presbiesôfago, ou seja, do esôfago “cansado” em virtude do avanço da idade. Isto indica que os cuidados para a manutenção da saúde deste órgão são indispensáveis para uma boa longevidade, já que a dificuldade de deglutir, em idosos, pode aumentar a ocorrência de pneumonias decorrentes da entrada de alimentos ou secreções do esôfago nos pulmões, devido à sua íntima localização junto da laringe e da traquéia.
Perspectivas de controle e tratamento
Felizmente, a descoberta da importância das doenças do esôfago no mundo contemporâneo acabou por determinar o desenvolvimento de cuidados preventivos mais eficazes, técnicas diagnosticas mais acuradas e terapêuticas mais efetivas que, no seu conjunto, passaram a oferecer soluções importantes para os portadores destas doenças e disfunções, variando desde a cura total até a melhora de maior ou menor monta na qualidade de vida, sempre na dependência de serem tratados mais precocemente.
O uso de medicações eficientes, dietas e mudança em alguns hábitos de vida – redução do estresse diário, da ingestão de alimentos fritos e gordurosos, moderação no uso de bebidas quentes como café, chocolate, chás, chimarrão, e semelhantes, de refrigerantes, e perda do excesso de peso corporal – podem oferecer bom controle aos portadores da Doença do Refluxo e suas decorrências, assim como colaborar na prevenção de distúrbios da função do órgão em idades mais avançadas.
Para os pacientes que não obtêm bom controle das suas queixas com estes cuidados, já é possível oferecer um tratamento cirúrgico minimamente invasivo, por videolaparoscopia, que quando executado por grupos especializados, oferecem índices de cura próximos aos 90%, ou mais, e que permanecem com bons índices de satisfação, mesmo após 10 anos, resultando assim na oportunidade de cura de uma doença crônica, fato raro na medicina e que pode ser aplicado mesmo em pacientes de idade avançada, desde que em boas condições de saúde, conduta já corriqueira entre nós.
O tratamento endoscópico, por sua vez, é uma esperança para um futuro não distante, já sendo possível vislumbrar melhoria da qualidade de vida de alguns grupos de pacientes por este método.
Também as doenças mais graves do esôfago, como os cânceres ou as dilatações esofágicas (mega esôfago) mais avançadas que implicam na substituição do órgão, passaram a se beneficiar destes avanços, principalmente pela identificação destas patologias em estágios mais iniciais, principalmente pela vigilância eficaz sobre a Doença do Refluxo e do Esôfago de Barrett, que é a sua forma mais avançada, e do desenvolvimento de unidades especializadas em cuidados durante o pré-operatório, o ato cirúrgico e no pós-operatório, resultando tudo isso em índices de cura nunca antes alcançados.
A cirurgia do câncer do esôfago é um dos procedimentos médicos que mais se beneficiam da experiência acumulada da equipe especializada que a aplica, e, portanto, há um consenso quase universal que deve ser aplicada por grupos especializados e experientes, como o que ocorre na Unidade de Gastroenterologia e Hepatologia (UGH) do Hospital Português, que tem prestado excelente serviço à população do nosso estado, dispondo de toda a infra-estrutura necessária para o suporte destes delicados procedimentos e de ampla experiência acumulada, oferecendo cura e bons benefícios, mesmo em casos avançados.
Prevenção através de bons hábitos
As mudanças aceleradas nos hábitos das populações ocidentais, ocorridas principalmente nas últimas 3 ou 4 décadas, não determinaram apenas a ocorrência de epidemias de doenças infecciosas como a AIDS ou a Hepatite C, mas também “epidemias” de disfunções de diversos órgãos, entre eles o esôfago, que provavelmente ainda não tiveram tempo de se adaptar às novas modas e costumes desenvolvidos pela humanidade.
Foi com o imprescindível apoio de novos conhecimentos sobre como funciona o nosso corpo e sobre os seus limites, como anteriormente citados, que aprendemos mais uma vez que a prevenção é sempre a melhor atitude quando se trata de preservar a saúde física. Aprendemos também que esta prevenção é tão importante quanto procurar atendimento médico eficaz, logo aos primeiros sintomas de doenças ou simples disfunções, sendo sempre preferível que enfrentar tratamentos em estágios mais avançados das doenças.
E, por fim, aprendemos que os bons hábitos – como viver mais calmamente, mesmo quando ainda somos jovens, utilizando preferencialmente as dietas mais naturalmente coloridas, de baixo teor calórico, à base de diversos vegetais naturais, evitando ao máximo o uso de fumo, moderando também a ingestão de bebidas alcoólicas, ou muito quentes e condimentadas, e de refrigerantes, sem que isso implique na perda da qualidade e sofisticação gastronômica das refeições – podem ser nossos companheiros diários na busca pela requalificação do prazer de comer e viver muito e bem.
* Os autores são médicos do Centro Médico Hospital Português, cirurgiões gerais, especializados no aparelho digestivo.
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